Suportando a Perseguição
João Calvino nasceu em Noyon, França, em
1509, e morreu em Genebra, cm 1564. Depois de Martinho Lutero, Calvino é a
maior figura na história do protestantismo. Com vinte e sete anos, publicou
suas célebres Institutos, profundo tratado teológico. Km 1536, Calvino
visitou Genebra e foi persuadido por Fartei, o reformador suíço, a unir-se com
os protestantes daquela cidade. Ali Calvino fez de Genebra a luz brilhante e
radiante do mundo protestante. Genebra se tornou a casa de refugio para
protestantes perseguidos de todas as panes da Europa, e Calvino, o pai e
conselheiro espiritual das igrejas na França. Holanda e Grã-Bretanha. Foi sua a
mente organizadora das igrejas protestantes; na educação, governo civil,
teologia e organização eclesiástica. Sua influência foi sentida por todo o
mundo. Um sistema de teologia, o calvinismo, leva seu nome e ainda domina
grandes porções do mundo protestante.
Bancroft
presta a Calvino este bem merecido tributo: "Assim ele prosseguiu ano após
ano. solitário e fraco, labutando pela humanidade, até que, depois de uma vida
de glória, ele deu a seus herdeiros pessoais uma fortuna em livros e mobília,
ações e dinheiro, não excedendo a duzentos dólares, e ao mundo uma reforma
mais pura, um espírito republicano na religião, com os análogos princípios da
liberdade republicana".
A
maioria dos sermões de Calvino foi pregado na Igreja de São Pedro, em Genebra.
Associamos Calvino com os grandes e difíceis temas dos decretos soberanos de
Deus e a predestinação. Mas no sermão que se segue, "Suportando a
Perseguição", vemo-lo como o pastor e pregador. O sermão é compreensível
por todos, contudo mostra o funcionamento fluente deste intelecto maravilhoso.
A perseguição pela causa de Cristo não era então um tema abstrato, pois aqueles
a quem Calvino pregou estavam diariamente em perigo de vida.
Suportando a Perseguição
“Saiamos, pois, a ele [Jesus]
fora do arraial, levando o seu vitupério." (Hb 13-13)
TODAS
as exortações que nos
são dadas para padecer-, mos pacientemente pelo nome de Jesus Cristo e em
defesa do Evangelho não terão efeito, se não nos sentirmos seguros da causa
pela qual lutamos. Quando somos chamados a nos desfazer da vida, é
absolutamente necessário saber em que base. Não podemos possuir a firmeza
necessária, a menos que esteja fundamentada na certeza da fé.
É
verdade que há pessoas que se expõem tolamente à morte, na defesa de algumas
opiniões absurdas e devaneios concebidos pelo próprio cérebro, mas tal
impetuosidade deve ser considerada mais como frenesi do que zelo cristão; e, de
fato, não há firmeza nem bom senso naqueles que, em certo tipo de casualidade,
se empolgam dessa maneira. Mas embora isso ocorra, é somente numa boa causa
que Deus nos reconhece como seus mártires. A morte é comum a todos, e os filhos
de Deus são condenados à ignomínia c torturas exatamente como os criminosos o
são; mas Deus faz a distinção entre eles, já que Ele não pode negar sua
verdade. De nossa parte, exige-se que tenhamos provas firmes e infalíveis da
doutrina que defendemos; e, por conseguinte, como eu disse, não podemos ser
racionalmente impressionados pela exortação-que recebemos para sofrer
perseguição pelo Evangelho, se nenhuma certeza verdadeira de fé foi impressa em
nosso coração. Arriscar a vida numa incerteza não é natural, e ainda que o
fizéssemos, seria só precipitação e não coragem cristã. Numa palavra, nada que
fazemos será aprovado por Deus, se não estivermos completamente persuadidos de
que é para Ele e sua causa que sofremos perseguição e o mundo é nosso inimigo.
Quando
falo de tal persuasão, não quero dizer meramente que temos de saber distinguir
entre a verdadeira religião e os abusos ou loucuras dos homens, mas também que
devemos estar inteiramente persuadidos da vida divina e da coroa, que nos é
prometida nos céus, depois que tivermos lutado aqui na terra. Entendamos que
estes requisitos são necessários e não podem ser separados um do outro.
For
conseguinte, os pontos com os quais devemos começar são estes: Temos de saber
bem qual é o nosso cristianismo, qual é a fé que temos de defender e seguir —
qual é a regra que Deus nos deu; e, assim, temos de estar bem inteirados de tal
instrução para que sejamos capazes de condenar com ousadia todas as falsidades,
erros e superstições que Satanás introduziu para corromper a pura simplicidade
da doutrina de Deus.
Veremos
agora o verdadeiro método de nos preparar para sofrer pelo Evangelho.
Primeiramente, devemos estar nos beneficiando até aqui na escola de Deus quanto
a estarmos decididos com relação à verdadeira religião e à doutrina que vamos
defender. Temos de menosprezar todos os artifícios e imposturas de Satanás e
todas as invenções humanas como coisas frívolas e carnais, já que corrompem a
pureza cristã; nesse particular diferindo, como verdadeiros mártires de Cristo,
das pessoas irracionais que sofrem por meras absurdidades. Em segundo lugar,
assegurando-nos da boa causa, conseqüentemente, temos de ser inflamados para
seguir a Deus aonde quer formos por Ele chamados. Sua Palavra tem de ter tal
autoridade para conosco como ela merece, e, havendo-nos retirado deste mundo,
temos de nos sentir arrebatados na busca da vida santificada.
Porém,
é mais que estranho que, embora a luz de Deus esteja brilhando mais
radiantemente que nunca, haja uma lamentável' falta de zelo. Em resumo, é
impossível negar que é para nossa grande vergonha, para não dizer temível
condenação, que conhecemos tão bem a verdade de Deus e temos tão pouca coragem
em defendê-la.
Acima
de tudo, quando olhamos para os mártires do passado, nos envergonhamos de nossa
covardia! Em sua maioria não eram pessoas muito versadas nas Santas Escrituras
para poderem disputar cm todos os assuntos. Eles sabiam que havia um Deus, a
quem convinham adorar e servir; que haviam sido remidos pelo sangue de Jesus
Cristo a fim de colocarem a confiança de salvação nEle e em sua graça; e que
todas as invenções dos homens, sendo mera inutilidade e lixo. eles deviam
condenar todas as idolatrias e superstições. Numa palavra, sua teologia era,
em substância, esta: Há um Deus que criou todo o mundo e nos declarou sua
vontade por Moisés e pelos profetas, e, finalmente, por Jesus Cristo e seus
apóstolos; e temos um Redentor exclusivo, que nos comprou por seu sangue e por
cuja graça esperamos ser salvos. Todos os ídolos do mundo são amaldiçoados e
merecem abominação.
Com
um sistema abarcando nenhum outro ponto que não esses, eles foram corajosamente
às chamas ou a qualquer outro tipo de morte. Não entravam de dois em dois ou de
três em três, mas em tamanhos grupos, cujo número dos que caíram pelas mãos dos
tiranos é quase infinito.
O
que então deve ser feito para inspirar nosso peito com a verdadeira coragem?
Temos, em primeiro lugar, de considerar quão preciosa é a confissão de nossa
fé aos olhos de Deus. Pouco sabemos o quanto Deus preza isso, se nossa vida,
que não é nada, é estimada mais altamente por nós. Quando isso se dá,
manifestamos maravilhoso grau de estupidez. Não podemos salvar nossa vida às
custas de nossa confissão sem reconhecermos que a mantemos em mais alta estima
que a honra de Deus e a salvação de nossa alma.
Um
pagão poderia dizer: "Foi coisa miserável salvar a vida deixando as
únicas coisas que tornavam a vida desejável!" E, não obstante, tal
indivíduo e outros como ele nunca souberam por que propósito os homens são
colocados no mundo, e por que vivem aqui. Sabemos muito bem qual deve ser a
principal meta de vida, isto é, glorificar a Deus, para que Ele seja nossa
glória. Quando isso não é feito, ai de nós! Não podemos continuar vivendo por
um único momento na terra sem amontoarmos outras maldições sobre nossas cabeças.
Contudo, não estamos envergonhados de obter alguns dias para nos enlanguescer
aqui embaixo, renunciando o Reino eterno ao nos separarmos dEle, por cuja
energia somos sustentados em vida.
Mas
como a perseguição sempre é severa e amarga, consideremos: Como e por quais
meios os cristãos podem se fortalecer com paciência, para resolutamente exporem
a vida pela verdade de Deus. O texto que lemos em voz alta, quando corretamente
compreendido, é suficiente para nos induzir a agirmos assim. O apóstolo diz: ''Saiamos
da cidade para o Senhor Jesus, levando seu vitupério". Em primeiro lugar,
Ele nos lembra que, embora as espadas não sejam desembainhadas contra nós, nem
o fogo aceso para nos queimar, não podemos ser verdadeiramente unidos ao Filho
de Deus, enquanto estamos arraigados neste mundo. Portanto, um cristão, mesmo
em repouso, sempre tem de ter um pé pronto a marchar para a batalha, e não só
isso, mas tem de ter seus afetos retirados do mundo, ainda que o corpo esteja
habitando aqui.
Enquanto
isso, para consolar nossas enfermidades e mitigar a vexação e tristeza que a
perseguição nos causa, é-nos oferecida uma boa recompensa. Sofrendo pela causa
de Deus, estamos caminhando passo a passo após o Filho de Deus e o temos por
nosso Guia. Fosse dito simplesmente que para sermos cristãos tivéssemos de
corajosamente passar por todos os insultos do mundo, encontrar a morte em todo
momento e da maneira que Deus se agradasse designar, teríamos aparentemente
algum pretexto para replicar. É um caminho desconhecido para irmos na dúvida.
Mas quando somos ordenados a seguir o Senhor Jesus, sua direção é muito boa e
honrada para ser recusada.
Somos
tão melindrosos quanto à disposição de suportar qualquer coisa? Então temos de
renunciar a graça de Deus pela qual Ele nos chamou à esperança de salvação. Há
duas coisas que não podem ser separadas — ser membro de Cristo e ser provado
por muitas aflições.
Quem
dera fosse realmente fácil, mesmo para Deus, nos coroar imediatamente sem
exigir que sustentássemos qualquer combate. Mas assim como é seu prazer que
Cristo reine em meio aos seus inimigos, assim também é sua vontade que nós,
sendo colocados no meio deles, soframos a opressão e violência que nos
infligem até que "Ele nos liberte. Sei, de fato, que a carne esperneia
quando deve ser levada a este ponto, mas não obstante a vontade de Deus tem de
sobrepor-se.
Em
tempos passados, muitas pessoas, para obter simples coroas de folhas, não
recusavam o trabalho duro, a dor e a dificuldade. Até mesmo a morte não lhes
era grande preço, e, ainda assim, cada um deles disputava uma corrida, não
sabendo se iria ganhar ou perder o prêmio. Deus nos oferece a coroa imortal
pela qual nos tornarmos participantes da sua glória. Ele não quer dizer que
devemos lutar a esmo, mas todos temos a promessa do prêmio pelo qual nos empenhamos.
Temos algum motivo para nos recusarmos a lutar? Achamos que foi dito em vão:
"Se morremos com Jesus, também com ele viveremos"? Nosso triunfo
está preparado, e contudo fazemos tudo o que podemos para evitar o combate.
para
não deixar meios sem serem empregados que sejam adequados para nos estimular,
Deus coloca diante de nós Promessas, de um lado, e Ameaças, do
outro. Sentindo que as promessas não têm influência suficiente,
fortaleçamo-nos acrescentando as ameaças. É verdade que devemos ser obstinados
no extremo de não pôr mais fé nas promessas de Deus, quando o Senhor Jesus diz
que Ele nos confessará como seus diante de seu Pai, contanto que o confessemos
diante dos homens.
Mas
se Deus não pode nos alcançar por meios gentis, não devemos ser meros
obstáculos se suas ameaças também falham? Jesus convoca todos aqueles que, por
medo da morte temporal, negam a verdade, a comparecerem no tribunal de seu Pai,
e diz que então o corpo e a alma serão entregues à perdição. Em outra passagem,
Ele afirma que negará todos o que o tiverem negado diante dos homens. Estas
palavras, se não somos completamente impérvios para sentir, bem que podem fazer
nossos cabelos se levantarem enfim!
É
em vão alegarmos que piedade deve nos ser mostrada, já que nossas naturezas são
tão delicadas; pois é dito, pelo contrário, que Moisés, tendo buscado a Deus
pela fé, foi fortalecido para não se entregar sob tentação. Portanto, quando
somos flexíveis e fáceis de dobrar, é sinal manifesto. Não estou dizendo que não
temos zelo, nem firmeza, mas que não sabemos nada de Deus ou de seu Reino.
Há
dois pontos a considerar. O primeiro é que todo o Corpo da Igreja em geral
sempre esteve, e até ao fim estará, sujeito a ser afligido pelos ímpios. Vendo
como a Igreja de Deus é pisoteada nos dias atuais pelos orgulhosos indivíduos
mundanos, como um late e outro morde, como torturam, como conspiram contra ela.
como ela é assaltada incessantemente por cães raivosos e bestas selvagens, não
nos esqueçamos de que a mesma coisa foi feita em todos os tempos passados.
Enquanto
isso, o assunto de suas aflições sempre foi afortunado. Em todos os eventos,
Deus fez com que, embora fosse oprimida por muitas calamidades, ela nunca tenha
sido completamente esmagada; como está escrito: "Os ímpios com todos os
seus esforços não tiveram sucesso no que intentaram". O apóstolo Paulo se
gloria no fato e mostra que este é o curso que Deus, em misericórdia, sempre
toma. Ele diz: "Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos,
mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não
destruídos; trazendo sempre por toda parte a mortificação do Senhor Jesus no
nosso corpo, para que a vida de Jesus se manifeste também em nossos
corpos" (2 Co 4.8-10).
Só
menciono brevemente neste sermão para ir ao segundo ponto, que está mais a
nosso propósito, que devemos tirar vantagem dos exemplos particulares dos
mártires que foram antes de nós. Não são limitados a dois ou três, mas são,
como diz o apóstolo, "uma tão grande nuvem". Com esta expressão, ele
intima que o número é tão grande que deve ocupar toda nossa visão. Para não ser
tedioso, mencionarei somente os judeus, que foram perseguidos pela verdadeira
religião, não apenas sob a tirania do rei Antioco, mas também um pouco depois
da sua morte. Não podemos alegar que o número dos sofredores foi pequeno, pois
formava um grande exército de mártires. Não podemos dizer que consistia em
profetas a quem Deus tinha separado das pessoas comuns, pois mulheres e
criancinhas faziam parte do grupo. Não podemos dizer que eles escaparam por
pouca coisa, porque foram torturados tão cruelmente quanto possível. Por
conseguinte, ouvimos o que o apóstolo diz: "Uns foram torturados, não
aceitando o seu livramento, para alcançarem uma melhor ressurreição; e outros
experimentaram escárnios e açoites, e até cadeias e prisões. Foram apedrejados,
serrados, tentados, mortos a fio de espada; andaram vestidos de peles de
ovelhas e de cabras, desamparados, aflitos e maltratados (homens dos quais o mundo
não era digno), errantes pelos desertos, e montes, e pelas covas e cavernas da
terra (Hb 11.35-38).
Comparemos
agora o caso deles com o nosso. Se eles suportaram tais coisas pela verdade,
que naquela época era tão obscura, o que devemos fazer com a luz que agora
brilha? Deus nos fala claramente; a grande porta do Reino dos céus foi aberta,
c Jesus Cristo nos chama para si mesmo, depois de ter descido até nós para que
pudéssemos tê-lo presente diante dos olhos. Que repreensão nos seria suficiente
para termos menos zelo para sofrer pelo Evangelho do que eles, que só tinham
saudado as promessas de longe, que só tinham um pequeno postigo aberto para
entrar no Reino de Deus e que só tinham um memorial e símbolo de Jesus Cristo?
Estas coisas não podem ser expressas em palavras como merecem, e, então, deixo
cada um a ponderar sobre elas consigo mesmo.
Em
primeiro lugar, onde quer que esteja, o cristão tem de resolver, apesar dos
perigos ou ameaças, andar em simplicidade como Deus ordenou. Que ele se guarde
tanto quanto possa contra a voracidade dos lobos, mas que não seja com astúcia
carnal. Acima de tudo, que ele coloque a vida nas mãos de Deus. Ele fez assim?
Então, se acaso vier a cair nas mãos do inimigo, que ele saiba que Deus, tendo
arranjado as coisas deste modo, se agrada de tê-lo como testemunha de seu
Filho. Portanto, ele não tem meios de recuar sem quebrar a fé em Deus, a quem
prometemos todo o dever na vida e na morte; Ele de quem somos e a quem
pertencemos, ainda que não tenhamos feito nenhuma promessa.
Que
seja mantido como ponto fixo entre todos os cristãos, que eles não devem
considerar a vida mais preciosa do que o testemunho da verdade, já que Deus
deseja ser glorificado assim. É em vão que Ele dá o nome de testemunhas (pois
este é o significado da palavra mártir) a todos os que têm de responder perante
os inimigos da fé? Aqui cada um não deve olhar para seu companheiro, pois Deus
não honra a todos igualmente com a chamada. E como somos inclinados a olhar,
devemos estar muito mais em guarda contra isso. Pedro, tendo ouvido dos lábios
de Jesus que na velhice seria levado para onde não quereria ir. perguntou o que
aconteceria com seu companheiro João. Não há nenhum de nós que não teria
prontamente feito a mesma pergunta, pois o pensamento que imediatamente nos
vem é: Por que sofro em lugar dos outros? Pelo contrário. Jesus Cristo nos
exorta — não só a todos em geral, mas a cada um em particular — a nos mantermos
"'prontos", a fim de que conforme Ele for chamando este ou aquele,
marchemos avante por nossa vez.
Expliquei
acima quão pouco preparados estaremos para sofrer martírio, se não estivermos
armados com as promessas divinas. Agora resta mostrar um pouco mais
completamente quais são o propósito e o alvo destas promessas — não para
especificar todos em detalhes, mas para mostrar o que Deus deseja que esperemos
dEle a fim de que nos consolemos em nossas aflições. Considerando-se
sumariamente, podemos citar três coisas. A primeira, é que já que nossa vida e
morte estão em suas mãos, Ele nos preservará por seu poder, de modo que nem um
fio de cabelo será arrancado de nossa cabeça sem a sua permissão. Portanto, os
crentes devem se sentir seguros em quaisquer mãos que venham a cair, pois Deus
não está despojado da tutela que Ele exerce sobre seu povo. Estivesse tal
persuasão bem impressa em nosso coração, ficaríamos livres da maior parte das
dúvidas e perplexidades que nos atormentam e nos obstruem em nossos deveres.
Vemos
tiranos livres; a esse respeito, parece-nos que Deus já não possui meio de nos salvar,
e somos tentados a cuidar de nossos próprios interesses, como se nada mais se
esperasse dEle. Pelo contrário, sua providência, à medida que Ele a revela,
deve ser considerada por nós como fortaleza inconquistável. Trabalhemos, então,
para nos conscientizarmos da plena importância da expressão que nosso corpo
está em suas mãos, que o criaram. Por isso. às vezes Ele libertou seu povo de
maneira milagrosa e além de toda expectativa humana, como se deu a Sadraque,
Mesaque e Abede-Nego na fornalha ardente; a Daniel, na cova dos leões; a Pedro,
na prisão de Herodes, onde estava preso, acorrentado e rigorosamente guardado.
Por estes exemplos, Ele quis testificar que Ele mantém nossos inimigos sob
controle, embora possa não parecer, e que. quando quer, tem o poder de nos
tirar dos grilhões da morte. Não que Ele sempre o faça, mas reservando a autoridade
para si de dispor de nós para a vida e para a morte, Ele quer que nos sintamos
completamente seguros de que Ele nos tem sob seu cuidado. Qualquer tirano que
nos tente e com qualquer fúria que se arroje contra nós. pertence a Ele somente
ordenar nossa vida.
Se
Ele permite que tiranos nos matem, não é porque nossa vida não lhe é querida, é
em maior honra cem vezes mais do que merece. Sendo esse o caso, tendo declarado
pela boca de Davi que a morte dos santos é preciosa aos seus olhos, Ele também
diz pela boca de Isaías que a terra descobrirá o sangue que parece estar
oculto. Que os inimigos do Evangelho, então, sejam tão pródigos quanto serão do
sangue dos mártires, pois terão de prestar contas dele ate a última gota. Nos
dias atuais, eles se viciam em derrisão orgulhosa, enquanto entregam os crentes
às chamas; e depois de terem se banhado no sangue deles, ficam tão intoxicados
desse sangue que consideram todos os assassinatos que cometem como mero esporte
festivo. Mas se temos paciência para esperar, por fim Deus mostrará que não é
em vão que Ele estimou nossa vida em tão alto valor. Nesse entretempo. não nos
ofendamos por parecer confirmar o Evangelho, que em valor ultrapassa o céu e a
terra.
Para
ficarmos mais seguros de que Deus não nos abandona nas mãos dos tiranos,
lembremo-nos da declaração de Jesus Cristo, quando disse que Ele mesmo é
perseguido nos seus membros. Deus de fato tinha dito antes por Zacarias:
"Aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho" (Zc 2.8). Mas
aqui é dito com muito mais expressividade que. se sofrermos pelo Evangelho, é
tanto quanto se o Filho de Deus estivesse sofrendo pessoalmente. Que saibamos
que Jesus Cristo tem de se esquecer de si mesmo antes de deixar de pensar em
nós, quando estamos em prisão ou em perigo de morte por sua causa. Que saibamos
que Deus tomará no coração todas as afrontas que os tiranos cometem contra
nós, da mesma maneira como se tivessem cometido contra o próprio Filho.
Vamos
agora ao segundo ponto que Deus nos declara em sua promessa para nossa
consolação. É que Ele nos sustentará assim pelo poder do seu Espírito para que
nossos inimigos, façam o que fizerem, mesmo com Satanás à cabeça, não obtenham
vantagem sobre nós. E vemos como Ele mostra seus dons em tal emergência; pois a
constância invencível que encontramos nos mártires mostra abundante e formosamente
que Deus trabalha poderosamente neles. Na perseguição. há duas coisas
revoltantes para a carne: a vituperação c insulto dos homens e as torturas que
o corpo sofre. Deus promete nos oferecer sua mão tão efetivamente, que
superaremos ambas pela paciência. O que Ele nos diz. Ele confirma por fato.
Tomemos este escudo para nos precaver de todos os medos pelos quais somos
assaltados, e não restrinjamos a operação do Espírito Santo dentro de tais
limites estreitos, como a supor que Ele não sobrepujará facilmente todas as
crueldades dos homens. Disto tivemos, entre outros exemplos, um que é
particularmente memorável. Um jovem que certa vez viveu aqui conosco, tendo
sido preso na cidade de Tournay, seria condenado à guilhotina, desde que se
retratasse, e se continuasse firme em seu propósito, seria queimado vivo!
Quando perguntado o que pretendia fazer, simplesmente respondeu: "Aquele
que me dará graça para morrer pacientemente por seu nome, sem dúvida me dará
graça para suportar o fogo!"
Devemos
tomar esta expressão, não como a de um homem mortal, mas como do Espírito
Santo, para nos assegurarmos que Deus não é menos poderoso para nos fortalecer
e nos tornar vitoriosos sobre as torturas, do que nos fazer submeter de boa
vontade a uma morte mais suave. Além disso, vemos muitas vezes que firmeza Ele
dá a malfeitores infelizes que sofrem por seus crimes. Não falo dos endurecidos,
mas dos que obtêm consolação da graça de Jesus Cristo, e, por esse meio, com
corações tranqüilos, sofrem os castigos mais cruéis que podem ser infligidos.
Um belo exemplo é visto no ladrão que foi convertido à morte de nosso Senhor.
Será que Deus, que assim ajuda poderosamente pobres criminosos quando suportam
o castigo de suas más ações, estará tão ausente do seu povo, enquanto lutam
pela causa santa, quanto a não lhes dar coragem invencível?
O
terceiro ponto a considerar acerca das promessas de Deus aos seus mártires é o
fruto que eles devem esperar por seus sofrimentos, e no fim, se for necessário,
por suas mortes. Este fruto se manifestará depois de terem glorificado o seu
nome, depois de terem edificado a Igreja pela constância, quando serão reunidos
com o Senhor Jesus na sua glória eterna. Mas como falamos acima brevemente, é
bastante aqui apenas lembrar. Que os crentes aprendam a erguer a cabeça para as
coroas de glória e imortalidade para as quais Deus os convida, a fim de que
assim eles não se sintam relutantes em deixar a vida presente por tal
recompensa. Para que se sintam bem seguros desta bênção inestimável, que sempre
tenham diante dos olhos a conformidade que eles têm a nosso Senhor Jesus
Cristo. E exatamente como Ele que, pela repreensão da cruz, chegou à
ressurreição gloriosa, vejam que a morte consiste em toda a nossa felicidade,
alegria e triunfo!